É preciso voltar ao tema da última postagem.
Analisei brevemente decisão do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que absolveu um motorista acusado do
crime de dirigir sob a influência de álcool. Resumidamente a decisão do
tribunal, como anunciado na imprensa, é: “Beber e dirigir só é crime se há
perda de reflexos”. O tribunal se baseou na última modificação do Código de
Trânsito Brasileiro introduzida pela lei federal 12.760/12, de dezembro de
2012. Essa interpretação pode se disseminar no Brasil, tornando inexequível a
imputação do crime de trânsito “dirigir sob a influência de álcool” a
motoristas que sejam autuados por essa qualificação.
Vale repetir a redação dos dois
Artigos do CTB que tratam dessa questão, de acordo com a nova lei (por lógica inverti a
sequência dos artigos):
Art. 306 [É crime] Conduzir veículo automotor
com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de
outra substância psicoativa que determine dependência:
§ 1o As condutas
previstas no caput serão
constatadas por:
I - concentração igual ou superior a 6
decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama
de álcool por litro de ar alveolar; ou
II - sinais que indiquem, na forma
disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora.
§ 2o A
verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de
alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de
prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.
§ “3o O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos
testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste
artigo.”
Art. 277 O condutor de veículo automotor envolvido em
acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser
submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios
técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar
influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.
§ 1o (Revogado).
§ 2o A infração prevista no
art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de
sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da
capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito
admitidas.
Tenho
criticado nossos legisladores por sua tibieza, tendência a inventar complexidades
inúteis e incapacidade de redigir leis objetivas. Em alguns assuntos, como na
alcoolemia, objetividade é essencial.
Exemplo de
subjetividade: o que significa capacidade psicomotora alterada? Ah, mas
o CONTRAN vai definir... Definir o que não pode ser facilmente avaliado de modo objetivo?
Primeiramente
vou fazer um contorno: tenho certa experiência pessoal nesse tema. Há milhares
de estudos feitos ao redor do mundo, desde os anos 20 do século passado sobre,
o efeito em condutores de veículos e operadores de máquinas, do álcool e de outras
drogas, mas vou citar apenas algo de que participei: testes de “slalom”. Slalom
significa fazer zig-zag entre obstáculos alinhados.
Participei da
organização de dois ou três testes de slalom com carros em Interlagos, onde uma
amostragem representativa de motoristas por sexo e por idade se submeteram ao
procedimento. Todos se achavam excelentes motoristas. Inicialmente depois de
uma refeição leve e sem nenhum álcool no corpo, esses motoristas deviam dirigir
num percurso em zig-zag, ida e volta, entre cones dispostos em distâncias
regulares, no menor tempo possível e sem derrubar nenhum cone. Eles faziam três
percursos iniciais para treinamento. Menor o tempo, maior a pontuação, e cada
cone derrubado subtraia boa pontuação. Valia mais um tempo menor do que
derrubar um cone sequer.
Depois do
“treinamento” havia cinco fases. A primeira era uma repetição do treinamento,
três percursos ida e volta sem bebida. A partir da segunda, os motoristas
bebiam certa quantidade de álcool antes do teste, calculada de acordo com o
sexo, idade e peso, embora o objetivo principal do teste não fosse comparar
indivíduos. Passado o tempo para a absorção do álcool no sangue eram realizadas
as três repetições do percurso. Nenhum resultado não era informado aos
participantes até o final dos testes. Ninguém via os testes dos outros.
Antes de
conhecer os resultados, a percepção geral era que na segunda e até na terceira
etapa a pontuação havia aumentado em relação à primeira, a sóbria. Para as
seguintes, eles admitiam (com exceções) “pequenas perdas” na pontuação.
Ao serem confrontados com a realidade, porém,
o espanto era geral. Já a partir da primeira fase alcoólica, com pequena
concentração de etanol no sangue (não guardei registros, portanto não me lembro
dos valores estimados) a velocidade aumentava e alguns cones eram
derrubados, portanto a pontuação caia. Mas os pilotos tinham a nítida sensação
de que haviam executado aquela fase melhor, pois estavam "mais aptos, mais
espertos, com reflexos mais rápidos". E os resultados das outras fases eram
muito, mas muito mesmo piores do que eles imaginavam ter conseguido realizar.
Evidentemente,
alterações na capacidade psicomotora já ocorrem com baixa concentração de
álcool no sangue, mas o que esses testes indicam é que, bem mais sério do que a
diminuição dos reflexos é a falsa e perigosa percepção de aumento na aptidão e
consequente aumento de autoconfiança! O resultado real era uma condução mais
veloz e menos segura. O álcool, mesmo em pequenas quantidades, libera os freios
mentais. Causa dois efeitos prejudiciais que se potencializam.
Mais um
adendo: atualmente testes como esse podem ser executados segura e facilmente em
simuladores de direção. Os resultados que citei são invariavelmente
confirmados.
Depois desse
desvio, posso retornar à nova lei e afirmar que ela foi um retrocesso.
Nos países
desenvolvidos o problema da condução de veículos sob o efeito do álcool vem
sendo atacado desde o início da indústria automobilística, notavelmente na Inglaterra.
Historicamente, o estado do condutor era estabelecido a partir de sintomas
avaliáveis pela autoridade, tais como dificuldade em permanecer parado ereto sem
balançar, fala enrolada, incapacidade de caminhar em linha reta, hálito e
outros. Como essas avaliações são subjetivas, antes da metade do século iniciou-se
uma tendência de substituí-las por testes objetivos, sendo o mais antigo e
ainda preciso a dosagem química do teor de álcool no sangue.
Testes em
amostras de sangue eram demorados e não se prestavam para efeitos de
fiscalizações preventivas em larga escala. O avanço da tecnologia propiciou a
invenção de vários métodos quantitativos de avaliação da presença de álcool no
ar expirado, havendo certa correlação linear entre essa forma de medida e o
teor de álcool no sangue. Esses testes, em conjunto, suplantaram (novamente,
nos países desenvolvidos) gradualmente as avaliações subjetivas e depois foram conjugados
com limites máximos definidos em lei. Testes preventivos em larga escala,
totalmente aleatórios, passaram a ser feitos pela polícia, detectando e punindo
(de várias formas) severamente milhões de motoristas alcoolizados. O Japão
criou prisões especiais para crimes de trânsito. Nos Estados Unidos até hoje
milhões de motoristas são fiscalizados todos os anos. Na Alemanha, a qualquer
momento e em qualquer lugar, os motoristas podem se deparar com um posto móvel
de fiscalização de alcoolemia, contando com dezenas de bafômetros portáteis e
uma Van equipada com instrumentos modernos e precisos para medição de álcool,
onde as contraprovas são feitas na hora. A tal questão “ninguém pode ser
obrigado a gerar prova contra si próprio”, de alguma forma não é obstáculo onde
o problema dirigir alcoolizado é levado a sério. Nesses países a lei e o
sistema trânsito preferem tirar motoristas bêbados das ruas e puni-los de forma
exemplar a esperar que eles matem para depois tentar processá-los. O
exemplo por efeito cascata das punições é impressionante.
Pelo que
descrevi, acho que ficou claro que no Brasil caminhamos no sentido contrário.
Portanto, o que
precisa ficar claro é que uma “lei seca” para o trânsito deve ter objetivo
primordialmente PREVENTIVO. O que governo e sociedade devem entender é que o
mais importante é EVITAR acidentes. Claro, é importante definir claramente responsabilidades
em casos de acidentes com vítimas, mas (raciocinando pelos extremos) se não
houver acidente não haverá vítima. Estima-se que em 20% a 40% dos acidentes que
ocorrem no Brasil algum motorista estava alcoolizado.
Cabe então uma
pergunta, num país ainda altamente imaturo em matéria de trânsito (legislação,
fiscalização e justiça): o que significa “dirigir alcoolizado”? Creio que para
a segurança no trânsito foi um erro monstruoso definir, como o fez a lei
12.760/12, que a “constatação
de sinais que indiquem... alteração da capacidade psicomotora” é crime. O que a lei deveria
definir como infração e crime é “Conduzir veículo automotor após a ingestão de bebida alcoólica”. Ponto.
As vantagens desse critério seriam enormes.
Por exemplo, se uma autoridade policial presenciasse alguém bebendo (num
restaurante, bar, ou qualquer lugar público) tomando depois a direção de um
veículo, poderia solicitar (ou fazer ele mesmo) a interceptação e em seguida
autuá-lo baseado em sua fé pública, sem a necessidade de teste algum. A
infração / crime estaria caracterizada pelo fato de o condutor estar dirigindo
após ter ingerido bebida alcoólica e não por estar dirigindo com
capacidade psicomotora alterada. A
diferença é enorme e positiva, embora possa não agradar muitos.
Esse critério não é novidade. Em alguns
Estados dos EEUU basta um policial encontrar embalagens de bebidas alcoólicas
abertas (melhor dizendo, com tampa ou lacre já abertos) dentro do veículo, para
que o motorista seja indiciado.
Mas e a caracterização de que, se
alguém sendo fiscalizado tomou ou não bebida alcoólica, como fazer isso? Para
tanto sinto muito, defendo inapelavelmente o conceito moderno, a prova
objetiva, mediante testes químicos. Deve haver, por certo, limites máximos por
tipo de teste apenas para o efeito de se evitar falsos positivos, o que deve
estar explícito na lei. Todos os testes possuem margem de variação ou erro.
No caso da medição do teor de álcool, os bafômetros, especialmente, são
sujeitos a uma gama de influências que podem levar ao falso positivo, isto é,
acusar certo nível de álcool no ar expelido sem que a pessoa o tenha ingerido
(o diabetes é um exemplo). Para isso e somente para isso deve haver limites
de erro e não de teor de álcool. Aliás, com o critério de ingestão zero de álcool antes de dirigir, esses limites nem deveriam constar
da lei, pois variam amplamente conforme o tipo de teste, instrumento e
condições de análise. Esses detalhes seriam relegados ao CONTRAN.
Mas, e a história de não ser legal
forçar alguém a executar testes objetivos? Cabe aos legisladores, em conjunto
com a justiça, encontrar uma saída. Culturas não estão esculpidas em pedra.
13 de julho de 2013