sábado, 13 de julho de 2013

A Justiça também quer dar sua contribuição à carnificina no trânsito? 2


 

É preciso voltar ao tema da última postagem.

Analisei brevemente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que absolveu um motorista acusado do crime de dirigir sob a influência de álcool. Resumidamente a decisão do tribunal, como anunciado na imprensa, é: “Beber e dirigir só é crime se há perda de reflexos”. O tribunal se baseou na última modificação do Código de Trânsito Brasileiro introduzida pela lei federal 12.760/12, de dezembro de 2012. Essa interpretação pode se disseminar no Brasil, tornando inexequível a imputação do crime de trânsito “dirigir sob a influência de álcool” a motoristas que sejam autuados por essa qualificação.

Vale repetir a redação dos dois Artigos do CTB que tratam dessa questão, de acordo com a nova lei (por lógica inverti a sequência dos artigos):

Art. 306 [É crime] Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

§ 1o As condutas previstas no caput serão constatadas por: 

I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar; ou 

II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora. 

§ 2o  A verificação do disposto neste artigo poderá ser obtida mediante teste de alcoolemia, exame clínico, perícia, vídeo, prova testemunhal ou outros meios de prova em direito admitidos, observado o direito à contraprova.  

§ “3o  O Contran disporá sobre a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.”

Art. 277 O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.  

§ 1o  (Revogado). 

§ 2o  A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.

 

Tenho criticado nossos legisladores por sua tibieza, tendência a inventar complexidades inúteis e incapacidade de redigir leis objetivas. Em alguns assuntos, como na alcoolemia, objetividade é essencial.

Exemplo de subjetividade: o que significa capacidade psicomotora alterada? Ah, mas o CONTRAN vai definir... Definir o que não pode ser facilmente avaliado de modo objetivo?

Primeiramente vou fazer um contorno: tenho certa experiência pessoal nesse tema. Há milhares de estudos feitos ao redor do mundo, desde os anos 20 do século passado sobre, o efeito em condutores de veículos e operadores de máquinas, do álcool e de outras drogas, mas vou citar apenas algo de que participei: testes de “slalom”. Slalom significa fazer zig-zag entre obstáculos alinhados.

Participei da organização de dois ou três testes de slalom com carros em Interlagos, onde uma amostragem representativa de motoristas por sexo e por idade se submeteram ao procedimento. Todos se achavam excelentes motoristas. Inicialmente depois de uma refeição leve e sem nenhum álcool no corpo, esses motoristas deviam dirigir num percurso em zig-zag, ida e volta, entre cones dispostos em distâncias regulares, no menor tempo possível e sem derrubar nenhum cone. Eles faziam três percursos iniciais para treinamento. Menor o tempo, maior a pontuação, e cada cone derrubado subtraia boa pontuação. Valia mais um tempo menor do que derrubar um cone sequer.

Depois do “treinamento” havia cinco fases. A primeira era uma repetição do treinamento, três percursos ida e volta sem bebida. A partir da segunda, os motoristas bebiam certa quantidade de álcool antes do teste, calculada de acordo com o sexo, idade e peso, embora o objetivo principal do teste não fosse comparar indivíduos. Passado o tempo para a absorção do álcool no sangue eram realizadas as três repetições do percurso. Nenhum resultado não era informado aos participantes até o final dos testes. Ninguém via os testes dos outros.  

Antes de conhecer os resultados, a percepção geral era que na segunda e até na terceira etapa a pontuação havia aumentado em relação à primeira, a sóbria. Para as seguintes, eles admitiam (com exceções) “pequenas perdas” na pontuação.

 Ao serem confrontados com a realidade, porém, o espanto era geral. Já a partir da primeira fase alcoólica, com pequena concentração de etanol no sangue (não guardei registros, portanto não me lembro dos valores estimados) a velocidade aumentava e alguns cones eram derrubados, portanto a pontuação caia. Mas os pilotos tinham a nítida sensação de que haviam executado aquela fase melhor, pois estavam "mais aptos, mais espertos, com reflexos mais rápidos". E os resultados das outras fases eram muito, mas muito mesmo piores do que eles imaginavam ter conseguido realizar.

Evidentemente, alterações na capacidade psicomotora já ocorrem com baixa concentração de álcool no sangue, mas o que esses testes indicam é que, bem mais sério do que a diminuição dos reflexos é a falsa e perigosa percepção de aumento na aptidão e consequente aumento de autoconfiança! O resultado real era uma condução mais veloz e menos segura. O álcool, mesmo em pequenas quantidades, libera os freios mentais. Causa dois efeitos prejudiciais que se potencializam.

Mais um adendo: atualmente testes como esse podem ser executados segura e facilmente em simuladores de direção. Os resultados que citei são invariavelmente confirmados.  

Depois desse desvio, posso retornar à nova lei e afirmar que ela foi um retrocesso.

Nos países desenvolvidos o problema da condução de veículos sob o efeito do álcool vem sendo atacado desde o início da indústria automobilística, notavelmente na Inglaterra. Historicamente, o estado do condutor era estabelecido a partir de sintomas avaliáveis pela autoridade, tais como dificuldade em permanecer parado ereto sem balançar, fala enrolada, incapacidade de caminhar em linha reta, hálito e outros. Como essas avaliações são subjetivas, antes da metade do século iniciou-se uma tendência de substituí-las por testes objetivos, sendo o mais antigo e ainda preciso a dosagem química do teor de álcool no sangue.

Testes em amostras de sangue eram demorados e não se prestavam para efeitos de fiscalizações preventivas em larga escala. O avanço da tecnologia propiciou a invenção de vários métodos quantitativos de avaliação da presença de álcool no ar expirado, havendo certa correlação linear entre essa forma de medida e o teor de álcool no sangue. Esses testes, em conjunto, suplantaram (novamente, nos países desenvolvidos) gradualmente as avaliações subjetivas e depois foram conjugados com limites máximos definidos em lei. Testes preventivos em larga escala, totalmente aleatórios, passaram a ser feitos pela polícia, detectando e punindo (de várias formas) severamente milhões de motoristas alcoolizados. O Japão criou prisões especiais para crimes de trânsito. Nos Estados Unidos até hoje milhões de motoristas são fiscalizados todos os anos. Na Alemanha, a qualquer momento e em qualquer lugar, os motoristas podem se deparar com um posto móvel de fiscalização de alcoolemia, contando com dezenas de bafômetros portáteis e uma Van equipada com instrumentos modernos e precisos para medição de álcool, onde as contraprovas são feitas na hora. A tal questão “ninguém pode ser obrigado a gerar prova contra si próprio”, de alguma forma não é obstáculo onde o problema dirigir alcoolizado é levado a sério. Nesses países a lei e o sistema trânsito preferem tirar motoristas bêbados das ruas e puni-los de forma exemplar a esperar que eles matem para depois tentar processá-los. O exemplo por efeito cascata das punições é impressionante.  

Pelo que descrevi, acho que ficou claro que no Brasil caminhamos no sentido contrário.

Portanto, o que precisa ficar claro é que uma “lei seca” para o trânsito deve ter objetivo primordialmente PREVENTIVO. O que governo e sociedade devem entender é que o mais importante é EVITAR acidentes. Claro, é importante definir claramente responsabilidades em casos de acidentes com vítimas, mas (raciocinando pelos extremos) se não houver acidente não haverá vítima. Estima-se que em 20% a 40% dos acidentes que ocorrem no Brasil algum motorista estava alcoolizado.

Cabe então uma pergunta, num país ainda altamente imaturo em matéria de trânsito (legislação, fiscalização e justiça): o que significa “dirigir alcoolizado”? Creio que para a segurança no trânsito foi um erro monstruoso definir, como o fez a lei 12.760/12, que a “constatação de sinais que indiquem... alteração da capacidade psicomotora” é crime. O que a lei deveria definir como infração e crime é Conduzir veículo automotor após a ingestão de bebida alcoólica”. Ponto.

As vantagens desse critério seriam enormes. Por exemplo, se uma autoridade policial presenciasse alguém bebendo (num restaurante, bar, ou qualquer lugar público) tomando depois a direção de um veículo, poderia solicitar (ou fazer ele mesmo) a interceptação e em seguida autuá-lo baseado em sua fé pública, sem a necessidade de teste algum. A infração / crime estaria caracterizada pelo fato de o condutor estar dirigindo após ter ingerido bebida alcoólica e não por estar dirigindo com capacidade psicomotora alterada. A diferença é enorme e positiva, embora possa não agradar muitos.

Esse critério não é novidade. Em alguns Estados dos EEUU basta um policial encontrar embalagens de bebidas alcoólicas abertas (melhor dizendo, com tampa ou lacre já abertos) dentro do veículo, para que o motorista seja indiciado.

Mas e a caracterização de que, se alguém sendo fiscalizado tomou ou não bebida alcoólica, como fazer isso? Para tanto sinto muito, defendo inapelavelmente o conceito moderno, a prova objetiva, mediante testes químicos. Deve haver, por certo, limites máximos por tipo de teste apenas para o efeito de se evitar falsos positivos, o que deve estar explícito na lei. Todos os testes possuem margem de variação ou erro. No caso da medição do teor de álcool, os bafômetros, especialmente, são sujeitos a uma gama de influências que podem levar ao falso positivo, isto é, acusar certo nível de álcool no ar expelido sem que a pessoa o tenha ingerido (o diabetes é um exemplo). Para isso e somente para isso deve haver limites de erro e não de teor de álcool. Aliás, com o critério de ingestão zero de álcool antes de dirigir, esses limites nem deveriam constar da lei, pois variam amplamente conforme o tipo de teste, instrumento e condições de análise. Esses detalhes seriam relegados ao CONTRAN.

Mas, e a história de não ser legal forçar alguém a executar testes objetivos? Cabe aos legisladores, em conjunto com a justiça, encontrar uma saída. Culturas não estão esculpidas em pedra.

13 de julho de 2013

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