quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Justiça também quer contribuir para a carnificina no trânsito?


 

Está nos jornais de hoje, 11 de julho de 2013:


“Beber e dirigir só é crime se há perda de reflexos”.

Copio parte da reportagem de O Estado de São Paulo, assinada por Luciano Bottini Filho:

“O motorista que bebeu álcool só comete crime de trânsito se há provas de que seus reflexos foram alterados, segundo decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS)”.

Kafka teria se enforcado se soubesse disso. Realmente, não vivemos num país sério. Ou há incompetência total do Congresso em saber como redigir uma lei, o que não seria de se estranhar, uma vez que o país vem paulatinamente abandonando o uso e o entendimento da língua portuguesa, ou deu a louca na Justiça. E olha que não foi um juiz de primeira instância, foi um tribunal que interpretou os termos da nova lei seca.

A primeira lei seca, complementar ao CTB original, diziam os políticos, ficou inviabilizada. Promulgada em 2008, tinha o objetivo de reduzir os acidentes provocados por motoristas embriagados, já que o CTB original era leniente e incompleto quanto ao ato de dirigir bêbado. A lei de 2008 endureceu preceitos e punições. Entretanto, não pegou. Foi dito que ela mudou a definição do que é embriaguez, passando a exigir para se comprovar esse estado que o condutor fosse submetido a exames de bafômetro ou sangue. Daí viria a bagunça, porque há um preceito legal de que ninguém pode ser obrigado produzir provas contra si mesmo. Será que os congressistas não sabiam disso? Se não sabiam como podem ser congressistas? Ou será que tudo não passou de embromação?

Intervalo:

Aliás, o que é “alcoolizado” para os motoristas? Essa é uma das perguntas que incluí em minhas “pesquisas particulares não científicas”. Dirigindo por estradas Brasil à fora encontramos outdoors com os dizeres: “DIRIGIR ALCOOLIZADO  É CRIME”. Foi isso que me motivou a fazer a “pesquisa”. Como será que as pessoas entendem essa mensagem? Perguntei por um bom tempo a centenas de pessoas, homens e mulheres, todos motoristas: para você, o que significa dirigir alcoolizado? Quase todas as respostas foram idênticas, para caracterizar uma infração, dirigir alcoolizado significa que o indivíduo está completamente bêbado, nas últimas, vendo quádruplo, com capacidade quase nula de percepção e reação. Para a grande maioria de meus entrevistados, estar “um pouco alto” não é embriagues e não tem nada de mais. Quanto mais jovem a pessoa mais convicta é essa percepção.

Voltando à vaca fria, o Congresso decidiu promulgar nova lei que em tese eliminaria obstáculos jurídicos que alegadamente impediam a aplicação eficaz da primeira. A lei 12.760/12 foi promulgada no final de 2012, alterando, como a anterior, artigos do CTB. Sua finalidade principal, conforme amplamente divulgado, era admitir provas alternativas de alcoolemia que não ferissem o preceito de “o suspeito não pode ser obrigado a produzir provas contra si mesmo”.

Será que deputados e senadores pisaram no tomate mais uma vez?

Parece que a celeuma está nas alterações do Artigo 277 e 306 do CTB, que pertencem ao capítulo dos crimes de trânsito. Por artigo, mostro a redação antes e o da nova lei, em azul o que foi removido e em vermelho o que foi acrescentado:

Redação do CTB, conforme modificado pela lei de 2008:

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

(Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006)

§ 1o Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.275, de 2006) – Revogado pela nova lei.

§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada, pelo agente de trânsito, mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor, apresentados pelo condutor. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 19.06.2008)

 
Redação atual do CTB, conforme modificado pela lei de 2012:

Art. 277 O condutor de veículo automotor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que, por meios técnicos ou científicos, na forma disciplinada pelo Contran, permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.  

§ 1o  (Revogado). 

§ 2o  A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.

 

Para os não juristas isso é um Samba do Crioulo Doido. A lei de 2008, em seu inciso § 2º já previa a possibilidade de obtenção de outras provas em direito admitidas! Por que essa abertura nunca foi explorada? Precisava mesmo outra lei?

Vamos a outras comparações:

Redação 2008: condutor... sob suspeita de dirigir alcoolizado será submetido a testes...

Redação 2012: condutor ... que for alvo de fiscalização de trânsito poderá ser submetido a teste...

Conclusão: passou-se de um critério mais objetivo para outro mais subjetivo. Talvez os congressistas tenham percebido que não há capacidade de fiscalização no país para garantir o será.

Comparação dos § 2o: A alteração mais notável na redação da lei de 2012 em relação à anterior é que a infração descrita no Artigo 165 (dirigir sob a influência de álcool, etc.) também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo,... que indiquem... alteração da capacidade psicomotora!

Aí está o X da questão. Como se caracteriza alteração da capacidade psicomotora? O que isso quer dizer? Há uma capacidade psicomotora padrão aplicável a qualquer pessoa sóbria ou há variações entre pessoas? E essa alteração tem de ser caracterizada sem que o cidadão seja forçado a realizar testes que produzam provas contra ele mesmo. Como sair desse imbróglio?

Este é um grande problema de nossos legisladores, complicam demasiadamente as coisas, principalmente aquelas que eles pensam que entendem. Para encerrar, mostro mais uma complicação adicionada pela lei 12.760/12. Ela modificou também o Artigo 306 do CTB, que define como crime: Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 19.06.2008)

A modificação manteve a concentração de álcool no sangue, mas acrescentou uma medida equivalente alternativa: concentração máxima de 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar, aplicável a testes com bafômetro. Até aí nada de mais. O problema surgiu quando a lei acrescentou que a conduta criminosa “Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência” é constatada (pelas medidas citadas ou): “II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psicomotora”. Novamente surge a tal ALTERAÇÃO DA CAPACIDADE PSICOMOTORA.

Precisava isso? Os legisladores complicam tanto, criam tantas zonas cinza, que parece até proposital. Mais complicações, mais interpretações judiciais, mais ações, mais trabalho para membros do sistema judiciário. Para mim, parece que o TJ-RS está certo. Se a autoridade não comprovar que o condutor fiscalizado estava com suas capacidades psicomotoras alteradas tecnicamente ele não cometeu um crime.  

Resultado final: a lei seca segundo a nova lei pode continuar sem efeito prático. Outras ações judiciais se seguirão em outros estados. Juízes e Tribunais poderão ter visões diferentes. Algum caso pode subir até o STJ, o qual não emite súmula vinculante. Anos, talvez décadas se passarão antes que dirigir com álcool no corpo (não importando a quantidade) seja crime inconteste no Brasil, como parece que os legisladores queriam impor. Mas sem saber como.

11/07/2013

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