segunda-feira, 20 de maio de 2013


Dos pedestres e condutores de veículos não motorizados

Acima está o título do capítulo IV do Código Brasileiro de Trânsito. Muitos não sabem que ele existe. São apenas quatro artigos, do 68 ao 71.

Dentro da ideia de entremear temas mais específicos entre as mazelas genéricas de nosso trânsito, vou citar alguns pontos desse capítulo.

No princípio era o pé dois. Em seguida a humanidade inventou a roda e nunca mais foi a mesma. Nas grandes cidades do mundo, como Londres, Paris e New York do final do século XIX, o congestionado trânsito de veículos movidos a tração animal (de passageiros e de carga) era responsável por uma enorme quantidade de acidentes, por incrível que pareça. Bondes e ônibus tracionados por mulas, carroças (todas as mercadorias eram distribuídas nelas), tílburis (taxi), charretes, caleças, carruagens, bicicletas e pedestres, todos ocupavam o mesmo espaço, desafiando a física. A maioria das ruas terminava nas portas das lojas e casas. Os veículos eram tracionados por um animal ou por parelhas, variando de uma até três ou quatro, sendo esses veículos difíceis de conduzir nessa confusão, afinal cavalos e burros têm um pouco de vontade própria. Os freios eram “travões” que agiam sobre os aros das rodas e lentíssimos para serem acionados. Nessa confusão atropelamentos eram comuns e o maior problema não eram choques, mas principalmente as finas e pesadas rodas passando por cima de corpos caídos no chão.  

Antes da era das motocicletas havia coisas parecidas no Brasil.

O artigo 68 do CTB diz que “é assegurada ao pedestre a utilização dos passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas e dos acostamentos das vias rurais para circulação”.

Então, em algum momento, em algum lugar do mundo, inventaram as calçadas, mas no Brasil esse conceito ainda não pegou totalmente. Calçada DEVERIA ser uma passagem livre e desimpedida, perfeitamente pavimentada, larga o suficiente, seguindo a mesma inclinação das ruas (livre, portanto, de degraus e outras concordâncias), com PEQUENA inclinação transversal quando indispensável, sobre a qual qualquer pessoa a pé deveria conseguir andar com conforto e segurança, mesmo sendo deficiente físico ou visual. Mães empurrando carrinhos de bebê também deveriam poder circular tranquilamente nas calçadas e não serem forçadas a ir para as ruas, como se vê comumente em nossas cidades.

Passeio apropriado” é o que menos se vê no Brasil, ou seja, as municipalidades não obedecem a lei, o CTB, em seu artigo 68. Saíram pela tangente, promulgando leis municipais afirmando que “é responsabilidade do proprietário do terreno lindeiro construir e conservar perfeitamente calçadas...”. Nada mais ineficaz e hipócrita no Brasil; ainda voltarei a esse tema.
Continuando com o artigo 68, este estipula que “O ciclista desmontado empurrando a bicicleta equipara-se ao pedestre em DIREITOS DE DEVERES”. Andando na bicicleta o ciclista deve obedecer todas as regras de trânsito.
Depois: “Nas áreas urbanas, quando não houver passeios ou quando não for possível a utilização destes, a circulação de pedestres na pista de rolamento será feita com prioridade sobre os veículos, pelos bordos da pista, em fila única...”.  Só pode ser brincadeira de mau gosto do legislador. 
 
Ainda: Nas vias rurais, quando não houver acostamento ou quando não for possível a utilização dele (por quê?), a circulação de pedestres, na pista de rolamento, será feita com prioridade sobre os veículos, pelos bordos da pista, em fila única, em sentido contrário ao deslocamento de veículos, exceto em locais proibidos pela sinalização e nas situações em que a segurança ficar comprometida”.  Existe alguma situação em que esse ato (andar na estrada) não comprometa a segurança?  Os motoristas sabem disso? Há uma situação de fato no Brasil, não existem locais adequados para a circulação de pedestres ao longo de estradas e vias rurais, nem onde rodovias atravessam cidades. O CTB tentou dar uma solução para esse problema no papel, ignorando a realidade. Estradas (com seus acostamentos) e pedestres não podem se misturar, a mistura é explosiva. Dizer que o pedestre “deve ter prioridade na pista” é algo surreal na vida real. Nenhum deputado ou senador conseguiu revogar a lei da gravidade até hoje, mas eles continuam tentando.
Continuando: “Nos trechos urbanos de vias rurais e nas obras de arte a serem construídas, deverá ser previsto passeio destinado à circulação dos pedestres, que não deverão, nessas condições, usar o acostamento”.  Alguma entidade ou administrador público já foi processado por não ter obedecido a esse artigo da lei?
Os artigos 69 e 70 estipulam regras a serem seguidas por pedestres para atravessar vias. Cito dois pontos: onde houver faixa a menos de 50 metros de onde está o pedestre este deve mandatoriamente caminhar até a faixa e atravessar por ela. E onde existir luz semafórica ande/pare para pedestres, o pedestre deve obedecer ao sinal.
Por último, o artigo 71 estipula que “O órgão ou entidade com circunscrição sobre a via manterá, obrigatoriamente, as faixas e passagens de pedestres em boas condições de visibilidade, higiene, segurança e sinalização”. Notem o obrigatoriamente... Como penalizar os “órgãos ou entidades com circunscrição sobre a via” e seus administradores que sistematicamente não obedecem a lei? Isso o CTB não diz.  
Mas o exemplo mais típico da mania brasileira de achar que tudo se resolve com leis, sem se preocupar com a viabilidade da implantação e “enforcement” está no artigo 254 do capítulo XV – Infrações:
É proibido ao pedestre:
I - permanecer ou andar nas pistas de rolamento, exceto para cruzá-las onde for permitido;
II - cruzar pistas de rolamento nos viadutos, pontes, ou túneis, salvo onde exista permissão;
III - atravessar a via dentro das áreas de cruzamento, salvo quando houver sinalização para esse fim;
IV - utilizar-se da via em agrupamentos capazes de perturbar o trânsito, ou para a prática de qualquer folguedo, esporte, desfiles e similares, salvo em casos especiais e com a devida licença da autoridade competente;
V - andar fora da faixa própria, passarela, passagem aérea ou subterrânea;
VI - desobedecer à sinalização de trânsito específica;
Infração - leve;
Penalidade - multa, em 50% (cinquenta por cento) do valor da infração de natureza leve.
 
Será que algum pedestre já foi multado no Brasil? Se foi, essa multa é tão rara como uma nota de trinta reais. 
Na verdade a desorganização urbana geral faz com que artigos como este se tornem letras mortas antes mesmo de entrar em vigor.
 
Escrito por Paulo R. Lozano em 20 de maio de 2013

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