Dos pedestres e condutores de veículos não motorizados
Acima está o título do capítulo IV do
Código Brasileiro de Trânsito. Muitos não sabem que ele existe. São apenas
quatro artigos, do 68 ao 71.
Dentro da ideia de entremear temas
mais específicos entre as mazelas genéricas de nosso trânsito, vou citar alguns
pontos desse capítulo.
No princípio era o pé dois. Em seguida
a humanidade inventou a roda e nunca mais foi a mesma. Nas grandes cidades do
mundo, como Londres, Paris e New York do final do século XIX, o congestionado trânsito
de veículos movidos a tração animal (de passageiros e de carga) era responsável
por uma enorme quantidade de acidentes, por incrível que pareça. Bondes e ônibus
tracionados por mulas, carroças (todas as mercadorias eram distribuídas nelas),
tílburis (taxi), charretes, caleças, carruagens, bicicletas e pedestres, todos ocupavam
o mesmo espaço, desafiando a física. A maioria das ruas terminava nas portas
das lojas e casas. Os veículos eram tracionados por um animal ou por parelhas, variando
de uma até três ou quatro, sendo esses veículos difíceis de conduzir nessa
confusão, afinal cavalos e burros têm um pouco de vontade própria. Os freios
eram “travões” que agiam sobre os aros das rodas e lentíssimos para serem acionados.
Nessa confusão atropelamentos eram comuns e o maior problema não eram choques,
mas principalmente as finas e pesadas rodas passando por cima de corpos caídos
no chão.
Antes da era das motocicletas havia coisas parecidas no Brasil.
O artigo 68 do CTB diz que “é assegurada ao pedestre a utilização dos
passeios ou passagens apropriadas das vias urbanas e dos acostamentos das vias
rurais para circulação”.
Então, em algum momento, em algum
lugar do mundo, inventaram as calçadas, mas no Brasil esse conceito ainda não
pegou totalmente. Calçada DEVERIA ser uma passagem livre e desimpedida,
perfeitamente pavimentada, larga o suficiente, seguindo a mesma inclinação das
ruas (livre, portanto, de degraus e outras concordâncias), com PEQUENA
inclinação transversal quando indispensável, sobre a qual qualquer pessoa a pé
deveria conseguir andar com conforto e segurança, mesmo sendo deficiente físico
ou visual. Mães empurrando carrinhos de bebê também deveriam poder circular
tranquilamente nas calçadas e não serem forçadas a ir para as ruas, como se vê
comumente em nossas cidades.
“Passeio apropriado” é o
que menos se vê no Brasil, ou seja, as municipalidades não obedecem a lei, o
CTB, em seu artigo 68. Saíram pela tangente, promulgando leis municipais
afirmando que “é responsabilidade do proprietário do terreno lindeiro construir
e conservar perfeitamente calçadas...”. Nada mais ineficaz e hipócrita no
Brasil; ainda voltarei a esse tema.
Continuando com o artigo 68, este estipula
que “O ciclista desmontado empurrando a bicicleta
equipara-se ao pedestre em DIREITOS DE DEVERES”. Andando na bicicleta o ciclista
deve obedecer todas as regras de trânsito.
Depois: “Nas áreas urbanas, quando não houver
passeios ou quando não for possível a utilização destes, a circulação de
pedestres na pista de rolamento será feita com prioridade sobre os veículos,
pelos bordos da pista, em fila única...”. Só pode ser brincadeira de mau gosto do
legislador.
Ainda: Nas vias rurais, quando não houver acostamento ou quando não for
possível a utilização dele (por quê?), a circulação de pedestres, na
pista de rolamento, será feita com prioridade sobre os veículos, pelos
bordos da pista, em fila única, em sentido contrário ao deslocamento de
veículos, exceto em locais proibidos pela sinalização e nas situações em que a
segurança ficar comprometida”.
Existe alguma situação em que esse ato (andar na estrada) não comprometa
a segurança? Os motoristas sabem disso? Há
uma situação de fato no Brasil, não existem locais adequados para a circulação
de pedestres ao longo de estradas e vias rurais, nem onde rodovias atravessam
cidades. O CTB tentou dar uma solução para esse problema no papel, ignorando a
realidade. Estradas (com seus acostamentos) e pedestres não podem se misturar,
a mistura é explosiva. Dizer que o pedestre “deve ter prioridade na pista” é
algo surreal na vida real. Nenhum deputado ou senador conseguiu revogar a lei
da gravidade até hoje, mas eles continuam tentando.
Continuando: “Nos trechos urbanos de vias rurais e nas
obras de arte a serem construídas, deverá ser previsto passeio destinado à
circulação dos pedestres, que não deverão, nessas condições, usar o acostamento”. Alguma entidade ou administrador público já
foi processado por não ter obedecido a esse artigo da lei?
Os artigos 69 e 70 estipulam
regras a serem seguidas por pedestres para atravessar vias. Cito dois pontos:
onde houver faixa a menos de 50 metros de onde está o pedestre este deve
mandatoriamente caminhar até a faixa e atravessar por ela. E onde existir luz
semafórica ande/pare para pedestres, o pedestre deve obedecer ao sinal.
Por último, o artigo 71 estipula
que “O órgão ou entidade com
circunscrição sobre a via manterá, obrigatoriamente, as faixas e passagens de
pedestres em boas condições de visibilidade, higiene, segurança e sinalização”.
Notem o obrigatoriamente... Como penalizar os “órgãos ou entidades com circunscrição sobre a via” e seus administradores que
sistematicamente não obedecem a lei? Isso o CTB não diz.
Mas o exemplo mais típico da
mania brasileira de achar que tudo se resolve com leis, sem se preocupar com a viabilidade
da implantação e “enforcement” está no artigo 254 do capítulo XV – Infrações:
É proibido ao pedestre:
I
- permanecer ou andar nas pistas de rolamento, exceto para cruzá-las onde for
permitido;
II
- cruzar pistas de rolamento nos viadutos, pontes, ou túneis, salvo onde exista
permissão;
III
- atravessar a via dentro das áreas de cruzamento, salvo quando houver
sinalização para esse fim;
IV
- utilizar-se da via em agrupamentos capazes de perturbar o trânsito, ou para a
prática de qualquer folguedo, esporte, desfiles e similares, salvo em casos
especiais e com a devida licença da autoridade competente;
V
- andar fora da faixa própria, passarela, passagem aérea ou subterrânea;
VI
- desobedecer à sinalização de trânsito específica;
Infração - leve;
Penalidade - multa, em 50% (cinquenta
por cento) do valor da infração de natureza leve.
Será que algum pedestre já foi multado no Brasil? Se
foi, essa multa é tão rara como uma nota de trinta reais.
Na verdade a desorganização urbana geral
faz com que artigos como este se tornem letras mortas antes mesmo de entrar em vigor.
Escrito por Paulo R. Lozano em 20 de
maio de 2013
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