Desde a entrada em vigor do novo Código de Trânsito Brasileiro no início de 1988, um dos três pilares que promovem um trânsito civilizado começou a ser – ainda mais – negligenciado: o enforcement (não mais colocarei essa palavra entre aspas). A situação foi se deteriorando progressivamente, ao ponto de se tornar, em minha visão, algo surreal, kafkaniano. Precisamos entender por quê.
O Código de Trânsito Brasileiro introduziu uma clara divisão de responsabilidades e uma teórica “parceria” entre órgãos federais, estaduais e municipais (adversários e inimigos políticos ignoram suas diferenças e se tornam parceiros em prol do benefício público?). Os municípios tiveram sua responsabilidade altamente ampliada na gestão das questões de trânsito. O município e não mais o Estado passou a ser o principal gestor do trânsito. Alegam as autoridades que nada mais justo, quando se considera que é neles que os cidadãos efetivamente moram, trabalham e se deslocam. Por isso, compete agora a órgãos executivos municipais de trânsito exercer nada menos que vinte e uma atribuições de gestão do trânsito.
Vejamos algumas delas:
Código de Trânsito Brasileiro - CTB
Art. 24. Compete aos órgãos e entidades executivos de trânsito dos Municípios, no âmbito de sua circunscrição:
I - cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito de suas atribuições;
V - estabelecer, em conjunto com os órgãos de polícia ostensiva de trânsito, as diretrizes para o policiamento ostensivo de trânsito;
VI - executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis, por infrações de circulação, estacionamento e parada previstas neste Código, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito;
XIV - implantar as medidas da Política Nacional de Trânsito e do Programa Nacional de Trânsito;
§ 2º Para exercer as competências estabelecidas neste artigo, os Municípios deverão integrar-se ao Sistema Nacional de Trânsito, conforme previsto no art. 333 deste Código.
Agora vejamos alguns pontos em que o CTB mais confundiu do que esclareceu, embora a intenção do legislador fosse boa:
O Código de Trânsito Brasileiro (e outras posturas federais) municipalizou a responsabilidade pela gestão do trânsito, mas:
1. Não prevê explicitamente de onde os municípios obterão recursos adequados para poder cumprir essa seriíssima responsabilidade. Nada fala sobre a repartição dos impostos e taxas que, teoricamente, sustentam a gestão do trânsito, como o IPVA, os impostos sobre combustíveis, etc. Sabemos da situação de penúria da grande maioria dos municípios brasileiros, muitos dos quais são inviáveis. Mas aos municípios coube inequivocamente a arrecadação de multas sobre certas infrações. Alguém pode estranhar que muitos procurem, digamos assim, “maximizar” a arrecadação com esses tipos de multas?
2. Os municípios ficaram responsáveis pela gestão do trânsito, mas para poder exercer essa obrigação eles antes têm mandatoriamente de cumprir uma série de exigências. Mas não há dispositivo legal que OBRIGUE os municípios a cumprir essas exigências, muito menos prazos para isso. Sem elas, eles não se integram ao Sistema Nacional de Trânsito! Não é a toa que hoje, 14 anos após o CTB, apenas pequena fração dos municípios brasileiros está (?) gerindo (evitei o termo fiscalizando) o trânsito. E nos outros? Nada.
3. Nenhuma entidade municipal tem poder de polícia! O poder de polícia no policiamento ostensivo continua com as polícias militares (a menos da polícia rodoviária federal), as quais respondem aos governos estaduais. Por isso citei, em postagem anterior, que considero os governadores de estado grandemente responsáveis pelos maus resultados de nosso trânsito.
4. Os municípios podem, teoricamente, executar “convênios” com a polícia militar (item V do Art. 24). Mas não há regras claras para esses convênios, principalmente quanto a como cobrir os custos.
5. Alguns municípios criaram Guardas Municipais e tentaram usar esse recurso na fiscalização do trânsito. Perderam na justiça. As Guardas Municipais devem se limitar a proteger o patrimônio do município.
6. O CTB incentiva (pelo menos em palavras) os municípios a criar órgãos de trânsito. Esses seriam os órgãos executivos municipais de trânsito. Alguns já existiam antes do CTB, como o DET (não confundir com o DSV) em São Paulo. Além do DSV, a real autoridade de transito da cidade criou o CET Companhia de Engenharia de Tráfego. O CET possui agentes de trânsito (os marronzinhos). Eles não são policiais, não têm poder de polícia, não podem com dois silvos breves do apito obrigar um motorista a parar para ser fiscalizado quanto à documentação ou outras questões! Em termos de enforcement, o marronzinho só pode autuar à distância, e mesmo assim sobre algumas infrações. Notem a complicação, a CET autua e o DSV emite a multa com base nos dados da autuação. Mais ainda, legalmente somente agentes funcionários concursados podem ter essa autoridade!
Acho que o leitor está começando a concluir para onde foi o enforcement do trânsito no Brasil. Na próxima postagem continuo com esse tema.
Escrito por Paulo R. Lozano às 8:00 horas do dia 18/07/2011
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