segunda-feira, 22 de abril de 2013


Américo pisca-pisca

Estive ausente alguns dias do Blog por motivo de viagem.

Quem teve a felicidade de ler os livros infantis de Lobato pode se lembrar de Américo Pisca-Pisca, personagem de fábula contada por dona Benta “O Reformador da Natureza”, que inspirou Emília a fazer a sua própria reforma da natureza. Para Américo e Emília estava tudo errado e só eles tinham competência para dispor com inteligência o mundo. Américo desistiu de sua reforma depois de um sonho, mas a Emília foi em frente.

Acaba de surgir um novo Américo Pisca-Pisca no Brasil, porém, desta vez, não é uma figura humana. É a Câmara dos Vereadores de São Paulo, que aprovou em primeira discussão no dia 17 de abril projeto do vereador Coronel Telhada que prevê que TODOS os semáforos do município funcionem em sinal de alerta, ou seja, no amarelo piscante, entre 23 e 5h. Razão alegada: “o alto índice de assaltos nos cruzamentos da cidade durante a madrugada”. Já existe legislação parecida em São Paulo, determinando que somente os cruzamentos mais perigosos adotem a medida. “Mas, para Telhada, a determinação virou letra morta e é raro encontrar um semáforo no amarelo piscante durante a madrugada. Não tem esse estudo, o pessoal não se preocupa com isso, reclama o vereador”. Por outro lado, o vereador “admite exceções”: “Vias com grande circulação durante a madrugada, como a Paulista e a Augusta, poderiam continuar com os semáforos funcionando, segundo o projeto”.

A reforma da Emília terminou em desastre, graças a várias consequências que ela não previu. O mesmo deve acontecer com a reforma que o Coronel está propondo, se ela for aprovada.

Estou ciente que grande parte, talvez a maioria dos motoristas, concorda com ele. Todavia, ao propor ou executar modificações em sistemas e processos é extremamente comum não se tomar o devido cuidado em pelo menos tentar antever e analisar TODAS as consequências possíveis, principalmente as negativas. Isso é um forte viés humano; perante suas ideias geniais quase ninguém aceita que as emendas poderão sair bem piores do que os sonetos. Há décadas estão incluídos nas ferramentas de gestão empresarial métodos estruturados que facilitam esse tipo de análise como, por exemplo, o FMEA que, traduzindo, significa “Estudo de Modo e Efeito de Falhas”. Sem o FMEA a NASA não teria conseguido colocar homens na Lua. Nunca soube de um único caso de gestores públicos brasileiros terem utilizado ferramentas parecidas.

De início, nessas leis (a existente e a proposta), temos um problema legal potencial: somente a União pode legislar em matéria de trânsito. Mas uma lei municipal, versando sobre como deve funcional a sinalização semafórica de madrugada interfere de algum modo na legislação de trânsito? Sim.

Já explico. Cruzamentos em que todos os semáforos estão em amarelo piscante devem ser exceção, pois indicam mal funcionamento do sistema eletrônico de controle. Tomem uma grande cidade do mundo, Londres ou New York por exemplo. É certo que os contratos de manutenção com empresas de serviços (eles também fazem isso) dão um prazo bastante exíguo para que uma anomalia num semáforo seja sanada a partir do momento em que o departamento de trânsito notifique o “contractor”. Em geral esse prazo é de duas horas, reduzido para uma em horários de pico. O problema do amarelo ou vermelho piscantes em todos os semáforos de um cruzamento é que NÃO FICA DEFINIDA NENHUMA PRIORIDADE DE PASSAGEM. Por princípio as convenções internacionais de trânsito estipulam que isso não pode acontecer. Deve haver sempre sinalização específica, ou critérios genéricos de prioridade de passagem nas leis de trânsito para cruzamentos em que não há sinalização. Existem em São Paulo (e no Brasil) registros de terríveis acidentes que ocorreram em cruzamentos com semáforos piscantes de dia.

 O segundo problema com essas leis é misturar temas distintos: segurança pública e trânsito. Se há um problema de segurança pública há que se tratar dele. Se a bandidagem perceber que é mais perigoso (para eles) assaltar de madrugada do que de dia leis assim nem seriam cogitadas.

Há outro exemplo ruim dessa mistura, a famigerada película escura nos vidros. Nasceu em países quentes para melhorar o conforto térmico, mas no Brasil se transformou em ilusório item de segurança individual. O pior das películas é o escurecimento do para-brisa. Em função da transparência legal exigida teoricamente nenhuma película poderia ser colocada em para-brisas, mas na total ausência de fiscalização (culpa do CONTRAN, INMETRO e DETRANS) isso sim se tornou letra morta. A visibilidade diminui terrivelmente, principalmente à noite e sob chuva, aumentando fortemente os fatores de risco de acidentes e atropelamentos.  Hoje os ladrões podem não saber de antemão se um motorista é homem ou mulher, mas sabem que, pela lei do desarmamento, dificilmente alguém estará com um revolver lá dentro, então eles assaltam com certa tranquilidade com ou sem película. E um problema colateral é que se as películas escondem ocupantes honestos escondem também assaltantes armados indo para o trabalho, aumentando muito o risco para os policiais em abordagens. Não me espanta que atualmente, à noite, as polícias militares só abordam veículos (raramente) em grandes bloqueios. Resultado? Menos controle do banditismo. Não é a toa que os motoristas mais irresponsáveis utilizam películas quase opacas no para-brisa.

E o amarelo piscante?  Vamos rever a alegação: em função do “alto índice de assaltos nos cruzamentos da cidade durante a madrugada”. Onde estão as estatísticas? Sabemos que boa parte dos assaltos é feita com bandidos dentro de carros roubados. A tática consiste em bater por trás. Será que isso só acontece em semáforos? Não acontece nas dezenas de milhares de lombadas que estão espalhadas pela cidade? Conheço casos de abordagens assim que ocorreram em estradas e grandes avenidas longe de semáforos, incluindo as avenidas marginais.

Sem prioridade de passagem, ao contrário do que alega o Coronel, o número de acidentes graves deve aumentar (considerando que de madrugada se roda bem mais depressa) e os atropelamentos serão mais frequentes e mais fatais. E para os bandidos a pé nada mudará, é só irem para vias de maior movimento onde os semáforos estão funcionando. Com pouco policiamento não há o que temer.

Há mais um ponto a lembrar, nem todo assalto termina em tiros (não quero diminuir o drama psicológico que assaltos a mão armada provocam), mas quase todos acidentes em madrugadas acabam com gente ferida ou morta.

Coronel, a bandidagem diminuiu em São Paulo nos últimos 10 anos, mas precisa diminuir muito, muito mais. Você e os outros nobres edis deveriam estar se preocupando é com isso.

 
Escrito por Paulo R. Lozano em 22 de abril de 2013

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