Américo
pisca-pisca
Estive
ausente alguns dias do Blog por motivo de viagem.
Quem teve a
felicidade de ler os livros infantis de Lobato pode se lembrar de Américo
Pisca-Pisca, personagem de fábula contada por dona Benta “O Reformador da Natureza”, que inspirou Emília a fazer a sua
própria reforma da natureza. Para Américo e Emília estava tudo errado e só eles
tinham competência para dispor com inteligência o mundo. Américo desistiu de
sua reforma depois de um sonho, mas a Emília foi em frente.
Acaba de
surgir um novo Américo Pisca-Pisca no Brasil, porém, desta vez, não é uma
figura humana. É a Câmara dos Vereadores de São Paulo, que aprovou em primeira
discussão no dia 17 de abril projeto do vereador Coronel Telhada que prevê que TODOS
os semáforos do município funcionem em sinal de alerta, ou seja, no amarelo piscante,
entre 23 e 5h. Razão alegada: “o alto
índice de assaltos nos cruzamentos da cidade durante a madrugada”. Já
existe legislação parecida em São Paulo, determinando que somente os
cruzamentos mais perigosos adotem a medida. “Mas, para Telhada, a
determinação virou letra morta e é raro encontrar um semáforo no amarelo
piscante durante a madrugada. Não tem esse estudo, o pessoal não se preocupa
com isso, reclama o vereador”. Por outro lado, o vereador “admite exceções”:
“Vias com grande circulação durante a
madrugada, como a Paulista e a Augusta, poderiam continuar com os semáforos
funcionando, segundo o projeto”.
A reforma da Emília
terminou em desastre, graças a várias consequências que ela não previu. O mesmo
deve acontecer com a reforma que o Coronel está propondo, se ela for aprovada.
Estou ciente que grande
parte, talvez a maioria dos motoristas, concorda com ele. Todavia, ao propor ou
executar modificações em sistemas e processos é extremamente comum não se tomar
o devido cuidado em pelo menos tentar antever e analisar TODAS as consequências
possíveis, principalmente as negativas. Isso é um forte viés humano; perante
suas ideias geniais quase ninguém aceita que as emendas poderão sair bem piores
do que os sonetos. Há décadas estão incluídos nas ferramentas de gestão empresarial
métodos estruturados que facilitam esse tipo de análise como, por exemplo, o
FMEA que, traduzindo, significa “Estudo de Modo e Efeito de Falhas”. Sem o FMEA
a NASA não teria conseguido colocar homens na Lua. Nunca soube de um único caso
de gestores públicos brasileiros terem utilizado ferramentas parecidas.
De início, nessas leis
(a existente e a proposta), temos um problema legal potencial: somente a
União pode legislar em matéria de trânsito. Mas uma lei municipal, versando
sobre como deve funcional a sinalização semafórica de madrugada interfere de
algum modo na legislação de trânsito? Sim.
Já explico. Cruzamentos
em que todos os semáforos estão em amarelo piscante devem ser exceção, pois
indicam mal funcionamento do sistema eletrônico de controle. Tomem uma grande
cidade do mundo, Londres ou New York por exemplo. É certo que os contratos de
manutenção com empresas de serviços (eles também fazem isso) dão um prazo
bastante exíguo para que uma anomalia num semáforo seja sanada a partir do
momento em que o departamento de trânsito notifique o “contractor”. Em geral
esse prazo é de duas horas, reduzido para uma em horários de pico. O problema
do amarelo ou vermelho piscantes em todos os semáforos de um cruzamento é que NÃO
FICA DEFINIDA NENHUMA PRIORIDADE DE PASSAGEM. Por princípio as convenções
internacionais de trânsito estipulam que isso não pode acontecer. Deve haver
sempre sinalização específica, ou critérios genéricos de prioridade de passagem
nas leis de trânsito para cruzamentos em que não há sinalização. Existem em São
Paulo (e no Brasil) registros de terríveis acidentes que ocorreram em cruzamentos
com semáforos piscantes de dia.
O segundo problema com essas leis é misturar
temas distintos: segurança pública e trânsito. Se há um problema de segurança
pública há que se tratar dele. Se a bandidagem perceber que é mais perigoso
(para eles) assaltar de madrugada do que de dia leis assim nem seriam cogitadas.
Há outro exemplo ruim
dessa mistura, a famigerada película escura nos vidros. Nasceu em países
quentes para melhorar o conforto térmico, mas no Brasil se transformou em ilusório
item de segurança individual. O pior das películas é o escurecimento do
para-brisa. Em função da transparência legal exigida teoricamente nenhuma
película poderia ser colocada em para-brisas, mas na total ausência de
fiscalização (culpa do CONTRAN, INMETRO e DETRANS) isso sim se
tornou letra morta. A visibilidade diminui terrivelmente, principalmente à
noite e sob chuva, aumentando fortemente os fatores de risco de acidentes e
atropelamentos. Hoje os ladrões podem
não saber de antemão se um motorista é homem ou mulher, mas sabem que, pela lei
do desarmamento, dificilmente alguém estará com um revolver lá dentro, então
eles assaltam com certa tranquilidade com ou sem película. E um problema
colateral é que se as películas escondem ocupantes honestos escondem também
assaltantes armados indo para o trabalho, aumentando muito o risco para os policiais em abordagens. Não
me espanta que atualmente, à noite, as polícias militares só abordam veículos (raramente)
em grandes bloqueios. Resultado? Menos controle do banditismo. Não é a toa que
os motoristas mais irresponsáveis utilizam películas quase opacas no
para-brisa.
E o amarelo piscante? Vamos rever a alegação: em função do “alto índice de assaltos nos cruzamentos da cidade
durante a madrugada”. Onde estão as estatísticas? Sabemos que boa parte
dos assaltos é feita com bandidos dentro de carros roubados. A tática consiste
em bater por trás. Será que isso só acontece em semáforos? Não
acontece nas dezenas de milhares de lombadas que estão espalhadas pela cidade? Conheço
casos de abordagens assim que ocorreram em estradas e grandes avenidas longe de
semáforos, incluindo as avenidas marginais.
Sem
prioridade de passagem, ao contrário do que alega o Coronel, o número de
acidentes graves deve aumentar (considerando que de madrugada se roda bem mais
depressa) e os atropelamentos serão mais frequentes e mais fatais. E para os
bandidos a pé nada mudará, é só irem para vias de maior movimento onde
os semáforos estão funcionando. Com pouco policiamento não há o que temer.
Há mais um ponto a lembrar, nem todo assalto termina em tiros (não quero diminuir o drama psicológico que assaltos a mão armada provocam), mas quase todos acidentes em madrugadas acabam com gente ferida ou morta.
Coronel, a
bandidagem diminuiu em São Paulo nos últimos 10 anos, mas precisa diminuir
muito, muito mais. Você e os outros nobres edis deveriam estar se preocupando é
com isso.
Escrito por Paulo
R. Lozano em 22 de abril de 2013
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